Injuriar

– Aqui está  – disse a madre colocando-me a mão nas costas, direccionando-me para a Raisa Petrovna como se falasse para mim e para ela ao mesmo tempo. – Vais aprender corte e costura, a Raisa Petrovna ensina-te.  – disse ela desta vez dirigindo-se apenas para mim.

Era evidente que esta obediência era para mim mas também, para a Raisa Petrovna, eu tinha que aprender, ela tinha que ensinar, parecia-me uma troca justa. A costura era-me familiar desde muito pequena, nem me lembro quando a minha mãe me ensinou a manusear a agulha e a linha para unir pedaços de tecido. Mais tarde nos dias aborrecidos no oitavo andar da Rua Frei Tomé de Jesus entretinham-me retalhes coloridos inventando roupas para Barbiesde cabelos embaraçados, a máquina de costura junto à janela a parede coberta de prateleiras com caixas e tecidos, a mesa azul da cozinha. A Deolinda era costureira de alta costura e costurava para muitas senhoras de bem da Avenida de Roma. Sempre empenhada a trabalhar. Uma organização suprema e uma metodologia de trabalho estudada transbordava aquela casa, tornando-a insoportável a duas crianças habituadas à rua. Olhavamos da janela os quitais dos prédios e por detrás das árvores o Quarteto. Eu gostava apenas de fazer as roupas para os meus bonecos, como me apetecesse, eu desatinava em ter que seguir as regras que a minha mãe me tentava ensinar, para mim bastava conseguir passar a linha numa agulha e espetar a agulha no tecido. Ela insistia mostrando-me como se deveria fazer e que tipo de peças ficariam bonitas se as juntassemos. Ela ensinou-me a fazer uma T-shirt perfeita do tamanho de um boneco, utilizando um T-shirt velha, o tecido e o elástico da gola recortado à medida da pequena. Eu conseguia fazer tudo com uma perfeição semelhante, mas demorava imenso tempo e continuava a preferir as minhas criações rápidas e imperfeitas. A minha mãe tentou também ensinar-me a fazer tricôt e croché, mas eu nunca quis aprender, até o António aprendeu, e deliciava as velhotas no comboio.  –  Um rapazito de cinco ou seis anos tricotar um cachecol. Aprendi mais tarde a fazer croché, e para mal da minha mãe, não foi com ela mas sim, com a actual mulher do meu pai. Imagino agora, como isso a deve ter deixado furiosa. Vendo que eu já sabia juntar os pontos do croché, a minha mãe ensinou-me a fazer pegas, explicou-me como se faz saquinhos e chapéus e até como se conseguia fazer bonecos, mas nunca fez. Houve uma vez que eu estava a fazer, por obrigação duas pegas de cozinha, deveriam ser hesagonais as pegas, portanto era necessário repetir pontos em determinados sítios para conseguir a forma, e era necessário trocar a cor da linha para fazer o degradée do arco-íris. Ela fez uma para me exemplificar como se faz, eu ajudei mas ela fez a maior parte. A segunda pega calhava-me fazer sozinha. Eu comecei, mas aquilo era tão aborrecido que eu, simplesmente me recusei a fazê-la e disse, que ela até podia ralhar comigo, e até podia ficar chateada mas que eu, não queria fazer a porcaria da pega. A minha mãe ficou muito chateda comigo, e disse-me que não me perdoaria enquanto eu não a fizesse. Passaram-se meses,  eu já me tinha esquecido do assunto e por vezes já me atrevia a entrar na brincadeira com ela, só que ela cortava sempre a onda fazendo-me lembrar, que ainda não me tinha perdoado. Passou muito tempo talvés até tenha passado um ano inteiro, e a minha criança já se tinha habituado àquela barreira criada pela projenitora afastando a cria. Uma vez ela veio ter comigo, e leu uma história de um daqueles livros que lhe contavam fantásticas histórias das vivências dos monges ortodoxos. “Havia num convento dois Irmãos que se chatearam por algum motivo. Chatearam-se e não se queriam perdoar. Um dia um dos irmãos adoeceu, e pediu que lhe chamassem o outro para lhe pedir o perdão. Trouxeram o outro Irmão e mesmo ali em frente a todo o convento ele não o quiz perdoar. Então abriu-se uma terrivel visão aos olhos de todos os Irmãos daquele convento. Um anjo flamejante espetou no seu peito um espada e um grupinho de demónios corcundas arrastaram com um tridente vermelho a sua alma, directamente para o inferno.” Ela leu-me isto, e acrescentou: “Devemos sempre perdoar os nossos irmãos”. Eu calculei que naquela altura ela me tivesse perdoado. Pouco antes de partir para o convento eu terminei a maldita pega, utilizando as cores que me apetecia, e ela não gostou, dizendo que as cores eram muito escuras.

A Madre trocou algumas palavras com Raisa Petrova e deixou-nos.

– Senta-te,  – Raisa Petrovna apontou para uma cadeira junto à mesinha.

Sentei-me ficando a observar como ela sentada junto à janela em frente à máquina de costura retirava as linhas de alinhavar de uma costura acabada de fazer. Óculos finos na ponta do nariz, as costas muito direitas. Fiquei a observá-la apenas, e ficamos a conversar sobre alguma coisa. A Raisa Petrovna não era muito faladora, mas gostava de divagar sobre as questões da vida.

No dia seguinte, logo a seguir ao pequeno almoço, completei a minha regra e corri para o atelier da Raisa Petrovna. Bati à porta:

– Boje nash, Pomilui nass! (Deus nosso, perdoa-nos)

Ela abriu-me a porta

– Bom dia Vassilissa!

-Bom dia Raisssa Petrovana!

Fiz lhe um sorriso, o lenço atado na occipital prendia os meus cabelos mal cortados econdendo o penteado hórrivel que eu tinha elaborado na minha ridícula fuga de casa. Aliás, por esse motivo eu nunca tirava o lenço colorido. Era cor de laranja e tinha um padrão desordenado de pequenos lozangos de várias cores. De lenço eu sentia-me fresca e arranjada, uma rapariga cheia de vida e de vontade, aplicada e atenta, organizada.

A Raisa Petrovna introduziu-me o espaço:

– A bancada é o centro deste atelier, o trabalho gira entre a bancada a máquina de costura e a tábua de engomar. Aqui em cima,  – Disse ela, apontando para a parede por cima da bancada de trabalho, onde havia prateleiras com caixas de cartão e de metal.  guarda-se a retrosaria e alguns tecidos.

Em algumas caixas havia etiquetas que indicavam o seu conteúdo:

– Fitas, franjas, moldes, linhas ponto-cruz. – li eu em voz alta.

– Aqui em baixo  – mostrava a Raisa Petrovna afastando a cortina por baixo da bancada – guardam-se os tecidos.  – Ela tirou um pedaço de tecido negro e colocou sobre a bancada.

Ao lado do quadrado preto brilhava uma tesoura niquelada. Ela pegou na tesoura cerrando firmemente os dedos, segurando as láminas unidas, mostrando-me o punho com a tesoura.

– A tesoura merece o máximo de cuidado, nunca a coloques na beira da bancada, nem nunca coloques o tecido sobre a tesoura. Uma tesoura que caia no chão, já não corta o tecido com precisão. Nunca utilizes a tesoura te tecido para cortar nada a não ser tecido. O papel, por exemplo, tira o fio à tesoura.

Ela poisou cuidadosamente a tesoura na bancada junto à parede. Não havia nada sobre a bancada, forrada de linóleo claro e brilhante.

– Aqui penduramos as peças prontas e as que estão para arranjar. – Disse-me ela apontando para a parede oposta.

Eu já tinha percebido tudo isto, e também já tinha percebido que junto à máquina de costura havia um móvel de gavetas onde se guardavam as linhas, as agulhas, outras tesouras, botões e alfinetes. Eu não gostava da costura nem um bocadinho, era uma tarefa em que o resultado final era demorado e que exigia demasiada perfeição.

– Cada tecido deve ser passado a ferro antes de se marcar o molde. Os tecidos de algodão ou lã, devem ser lavados antes de se trabalhar com eles, para que possam encolher, se fizeres um fato com um tecido que encolhe durante a lavagem, ele vai encolher quando a pessoa o lavar e ficar pequeno, lava-se primeiro portanto, e passa-se a ferro.

– Percebido.

– Cada molde deve ser marcado e cortado com o tecido bem direito, e deve ser marcado com exactidão tendo em conta a direcção da linha de base. Repara, o tecido é mais elástico em largura, menos elástico em comprimento, e muito mais elástico na diagonal – Ela exemplificava a sua explicação puxando o tecido em diferentes direcções.

A minha mãe já me tinha explicado isso, e eu também já sabia que havia tecidos diferentes, que as malhas eram mais complicadas de cozer porque eram elásticas e se fossem grossas podiam-se desmanchar, a seda era dificil de cozer porque escorregava e era muito fina, as lonas e os tecidos de lã eram faceis de cortar e de cozer porque se mantinham firmes, se bem que, para trabalhos mais minuciosos as lonas não eram boas por causa da grossura do fio do tecido. Os tecidos mais faceis de cozer e de cortar eram os de algodão, tipo lençol, ou mesmo lençois, eram óptimos. Havia ainda o cetim, e muitos outros nomes que a Raisa Petrovna me foi explicando aos poucos mas que eu nunca consegui fixar por falta de interesse.

– Quando marcas um molde no  tecido, deves estudar o tecido primeiro, procurar imperfeições, ou defeitos, ter atenção ao avesso. Um molde deve ser marcado da forma mais económica, de forma a gastar o mínimo de tecido possível, sem nunca esquecer a direcção das linhas. As linhas longitudinais devem ficar sempre no sentido da altura do que se pretende recortar, a não ser que se pretenda outro tipo de efeito, mas se recortares o molde de um fato numa diagonal torta o fato vai ficar torto.

Todas estas explicações eram demasiádo óbvias e lógicas, deixavam-me pressentir um trabalho maçador e moroso. Eu ouvia com atenção, para que não me escapasse nada.

– Duas peças de um molde devem ser alinhavadas em cima da bancada para coincidirem perfeitamente, evitando esticar uma peça mais do que a outra. Todas as costuras devem ser passadas a ferro depois de feitas. Primeiro passas a ferro a peça sobre a costura de um lado e do outro, depois abres as peças e passas com o ferro vincando cada uma na zona da costura.

Perfecçionismo irritante, lá ia eu embarcar na minha obediência. O que me reconfortava no meio disto tudo era que eu não tinha qualquer necessidade de me apressar pois não tinha prasos a cumprir. Eu estava apenas a aprender, tinha que fazer o melhor e mais perfeito possível, podia demorar o tempo que me fosse necessário.

– Vais fazer um bolço, para começar, aqui no fato da Irmã Ioanna.

Ela tirou da gaveta da mesinha um livro e procurou as instruções para fazer um bolço escondido. Olhei para o esquema, tinha cerca de 15 etapas e consistia de cinco peças de tecido. Era muito complicado, ou melhor, parecia muito complicado, mas seguindo passo a passo as instruções do livro, aquilo fazia-se com facilidade, era só um pouco dificil unir bem as peças e fazer as costuras direitas. Demorei a manha inteira a recortar as peças e a tarde inteira a alinhavá-las a cozê-las, a passar as costuras a ferro, a tirar linhas, a cozer novamente e novamente a passar a ferro, só no dia seguinte consegui acabar o bolço. Mas devo dizer que saíu um belo bolço, passei então desejar um bolço igual para mim.

Todos os dias depois de concluir as obediências do refeitório eu ia para o atelier da Raisa Petrovna, que ela dizia que não era dela. Todos os dias treinava as minhas capacidades, cortanto tecidos alinhavando peças, passando costuras, abrindo costuras, desfazendo costuras, voltando a fazer costuras, recortando tecido, unindo peças de moldes, fazendo punhos, bolços e golas em tecido preto, fazendo baínhas em lenços pretos. Eu detestava aquilo, comecei-me a aborrecer rápidamente, mas era a minha obediência e de qualquer maneira os meus dias já tinham começado a sofrer muito com excesso de tempo livre. Os telefonemas da minha continuavam, carregando nas mesmas notas em andamento Larghissimo, deixando-me a meditar em Grave. A opressão da culpa, cortava-me literalmente a respiração. Eu chorava no atelier da Raisa petrovna, deixando cair lágrimas manchando os tecidos negros. Ela sentava-me na cadeira junto a mesa e de costas para a janela ouvia-me atentamente. Eu limpava as lágrimas com as mãos esfregando os olhos, e olhava para os chôpos que baloiçavam com o  vento acenando-me detrás do relvado visinho. A primavera ainda pairava no ar e as espigas ainda não tinham amadurecido.

– A minha mãe diz que eu tenho que voltar, para continuar a estudar. É uma obrigação.

– Sim estudar é muito importante. Uma mulher deve ser bem formada, uma rapariga digna e inteligente termina a escola entra na faculdade, mostra-se no mundo.

– Mas eu não gosto daquele mundo. As pessoas são agressivas. Elas passam a vida a gosar, a rebaixar e a repreender as atitudes umas das outras. Lá ninguém ouve as minhas palavras, ninguém quer saber do que me importa. Vivem todos embrenhados neles mesmos pavoniando-se e exigindo que os outros façam o mesmo.

Ela olhou para mim com um ar pensativo, como se sestivesse a ver algo que eu não estava a ver nem saberia compreender. “É um mundo de homens, pequena Vassilissa, mas olha que aqui dentro não é muito diferente.”  – Terá provavelmente passado pela cabela dela.

– Mostrar a todos que sou digna e inteligente, ao concluir a escola e entrar na faculdade, não me vai dar nada do que eu quero, mas a minha mãe diz que eu estou a refugiar-me aqui no convento. – Parei um pouco para pensar. – Bom! não sei se é ela que diz isso ou se transmite as ideias do meu padrasto. Ela diz também que sendo ela minha mãe é a ela que devo obediência em primeiro lugar. – Não sei se seriam as palavras da minha mãe estas, ou se eu já teria adaptado a ela as palavras da Lilia.

Fosse como fosse o sentimento de culpa era imperdoavel, e já me tinha interrompido o raciocínio em que eu quase conseguia explicar o verdadeira motivação de viver no convento.

– Ainda tens muito que aprender – Proferiu a Raissa Petrovna, depois de alguns instantes de silêncio.

– Sim ainda tenho que aprender a fazer berguilhas.

– Aqui não tens que fazer berguilhas Vassilissa.

Incomodava-me bastante quando as pessoas me diziam que eu ainda tinha muito que aprender. Essa frase não me acrescentava informação nenhuma, pois isso eu já sabia bem sabido. Eu estava ansiosa era para que me contassem alguma coisa nova porém, cada vez mais me davam a entender que eu tinha que encontrar soluções sózinha. Eu cá adorava aquelas pessoas que encontravam soluções simples para os problemas e queria muito que neste momento alguém me ajudasse, em vez de se calarem formando rodinha à minha volta à espera que eu compreenda, enquanto se deliciam com o facto de possuírem mais informação que eu. Parecia impossível alguém me colocar algumas questões que me fizessem retomar a linha de raciocínio correcta.

A madre batia à porta e entrava em seguida. Levantei-me e fazendo-lhe uma vénia, e recebendo a benção respeitei-a com um beijo. Todo o meu respeito, devia-o à minha mãe, era no entanto a esta Madre que o demonstrava. Era mais que óbvio que a minha mãe não conseguia suportar tal injuria e frevia libertando vapor sem me conseguir alcançar.

– O que se passa Vassilissa? – olhou-me com olhar sério.

Olhei-a calada tentando reter as lágrimas que já nasciam sobre a palpebra.

– São os telefonemas da tua família? Eles não podem estár constantemente a telefonar-te. A tua mãe tem que perceber que quando uma pessoa fica no convento deve reduzir o contacto com o mundo de que veio.

Da próxima vez que após a campaínha estridente do telefone, se ouvia pelas escadas a vóz aguda da Madre Evfrosínia, chamando a Vassilissa, ouvia-se a porta da cela da Madre,

– Não senhora, eu vou falar com ela. Isto é um convento! Esta agora, a telefonar à filha todos os dias?! – Refilava ela em vóz alta descendo desajeitadamente pelos degraus de madeira como uma matrioshka.

Sentei-me nas escadas de caracol, não conseguia ouvir a conversa, mas fiquei atenta até ouvir o som da campaínha indicando final da chamada. Voltei para o meu quarto, e esperei. Ninguém apareceu para me informar do que tinha acontecido. Mais tarde à hora da missa eu olhava atenta para a Madre Evfrosínia tentando decifrar no seu olhar os seus pensamentos. Só no dia segunte é que ela falou comigo, ocasionalmente, na cozinha, disse que iria procurar um sistema de estudo por correspondencia. Alguns dias depois voltei a falar com a minha mãe e ela informou-me que ficara acordado que eu terminaria os estudos através de um curso por correspondência em francês.

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